18 de novembro de 2014

A CULPA É DA ETERNIDADE

                     

    Machacalis é uma simplória cidadezinha baiana  onde nasceu Juarez. Prensada entre a montanha e o Oceano Atlântico, bem ao sul do estado, a pequena cidade é hoje modelo de desenvolvimento, graças à força dos braços dos imigrantes europeus que na segunda metade do Século XVIII lá se estabeleceram, e assim,  a mão que plantou, também serviu para comercializar frutas, vegetais e queijos, entre outros.


      Juarez aspirava entrar num curso superior, não havia  conseguido ainda, de vez que em sua cidade não existia Universidade, assim teve  ele  que se contentar sendo oficial de joalheiro, e, ao ver que os seus ganhos eram mirrados, começou a trabalhar como santeiro, uma profissão que prometia no Brasil, e que foi trazida de Portugal por Cabral e, tempos depois, esta arte foi muito bem desenvolvida em Minas Gerais, pelo mestre Antonio Lisboa, O Aleijadinho.


         Juarez, na verdade, sempre foi autodidata em quase todas as artes; tinha terminado o segundo ciclo e parado por aí.


          Como poucos em sua cidade, desenvolveu  especial dom para trabalhar com entalhes em cedro,  assim produziu as mais diversas formas de Sanhaços, depois virou santeiro, profissão muito mais remunerada. 


           A maioria dos santos barrocos que eleproduziu, foram parar na única Igreja Barroca da cidade, no final da rua central. 


           Mudando de época e lugar, no Far West americano, os índios Siux,  que foram praticamente exterminados pelos brancos, contavam o tempo por luas, nós o contaremos por sóis, pois o astro-rei irrompe todo dia  com fortes raios na linha do horizonte do oceano Atlântico, sobe e percorre o céu, até se esconder, com uma Lânguida Luz, por trás da Serra. 


            Na época da Conquista do Oeste Americano, a região tinha ricas jazidas de ouro no sub-solo, fato que atraiu homens de todos os tipos; a região se tornou perigosa e seus habitantes, na sede do metal e das mulheres de vida fácil, resolviam suas diferenças no revolver, e, com o ocaso do ouro, muito posteriormente, a Indústria Cinematográfica de Hollywood descobriu e produziu inúmeros filmes de Cowboys, estórias tão interessantes que revelaram um rico filão  na sétima arte, tanto  que foi copiada pela Cinecitta da Itália, que pegando carona, produziu belos filmes de Western pizza.

Em Machacalis tudo era grande, só não era maior  que a vontade de Juarez, em sua incessante busca por  Universidades, que as sabia próprias das cidades  maiores.


       Foi assim que Juarez desembarcou em Ilhéus, a bela cidade litorânea do sul baiano. Era Lá, outrora, o centro das grandes produções de cacau  exportadas para Europa. Foi também lá que o exímio escritor baiano Jorge Amado se inspirou para escrever grandes romances, cujos protagonistas foram os Coronéis da Região.


        Mas, Juarez tinha muito desejo de novos ares, novas conquistas, novos descobrimentos, e, Ilhéus, apesar do seu portento, lhe escapava entre os dedos da mão. 


         Juarez estava sequioso de mais conhecimento e de uma vida nova na cidade grande, buscava, na realidade, outras oportunidades, e foi assim, que decidiu vencer a montanha rumo a uma vida nova.


      No caminho da Serra parou em Itabuna, um próspero aglomerado urbano. A cidade, em suas ruas de paralelepípedos, exibia casas com feições coloniais,  mostra de um passado de apogeu, de luxo e poder; foi assim que Juarez tomou conhecimento  de Estanislaw, um senhor de origem européia, que sempre passava na cidade procedente do  Rio de Janeiro,  para dias depois, percorrer em seu pequeno avião Cessna, os garimpos do interior da Bahia, comprando cristal de rocha.


     Quando na cidade, Estanislaw, homem de cultura e muitas posses, instalava-se   num confortável casarão de sua propriedade. Sentado de frente a uma ampla janela, balançava sua cadeira e de cachimbo na boca,  se dava ao luxo de um ócio inventivo.


           Depois de descansar,  as vezes por duas semanas e pôr em dia os  papos com os amigos, Estanislaw  subia novamente a serra até Vitória da Conquista, e lá no aeroporto da cidade,  guardava em hangar próprio, o seu pequeno avião com o qual continuava sua viagem pelos garimpos e cidades baianas.


         Juarez que não era nenhum comprador de cristal de rocha, enveredou pela Rio-Bahia, em direção à cidade grande. 


         A estrada afastou a vegetação, a cada lado, a mais de 20m. e se  perdia de vista, sempre em longas retas, só interrompidas por depressões no percurso, emergindo do outro lado, e continuando sempre em linha reta até onde a vista alcançava.  O vapor que o asfalto exalava, vez por outra, mostrava as imagens tremidas de algum gado que se arriscava a atravessar a  BR 116.


        Depois de deixar inúmeras cidades ao lado da estrada, finalmente Juarez chegou à Princesa do Sertão, Feira de Santana, uma cidade plana que distribui o fluxo do trânsito para todo o interior da Bahia.


        Adiante, o ônibus em que Juarez viajava virou à direita e enveredou em direção à capital Soteropolitana, era lá, na cidade grande, que Juarez encontraria a realização dos seus desejos de superação, era lá que estava traçado o seu destino, lá estavam  plasmados os seus mais caros anseios. 


          Seguiu enfrente decidido, passou por cima do arco-iris, e todo estiloso navegou num lindo céu azul anil, não sem antes pensar que, na maioria das vezes, esperar nem sempre é bom, é protelar o fato de ser feliz, mas tudo tem que ser feito na hora certa, e com muita fé, sem medo, pois o medo só atrapalha.


        O Astro Rei se ergueu deixando uma estreita estela de fogo no mar, e como o importante mesmo é se reconhecer, o reflexo dessa linha brilhante é o ensejo para uma divagação mais longa da mente. Afinal, tudo corre num sentido só, e nossas ações isoladas não passam de coisas minimalistas, que, em última análise, nada mudam, só estamos mais velhos, mesmo que o tempo tenha corrido apenas um segundo, mas como sonhar é de graça, sonhe e não esqueça que a nossa matéria está na corrida do tempo, e que nosso tempo chegará ao seu final, não tenha a menor dúvida, por isso viva a vida decentemente, o resto certamente é efêmero, é tolice.


        A estrada continuava a exibir  grandes retas, havia ondulações.  A cada momento o trânsito na estrada aumentava.


        Por fim, uma imagem linda, parecia um quadro de aquarelas; na ponta de uma península se estendia Salvador, uma cidade linda, agarrada ao continente, de um lado o Atlântico, o caminho dos conquistadores lusitanos, e do outro lado o Recôncavo, dominado pela bela ilha de Itaparica.


        A capital soteropolitana foi a primeira capital do Brasil, e  exibe as mais belas cúpulas das magníficas igrejas que povoam seu visual.


          No extremo norte a surpreendente visão começa com o Mont Serrat, e, entre tantos outros, a famosa Igreja do Bomfim, conhecida também pela Procissão dos Navegantes e a lavagem de suas escadas por diversas baianas, vestida  a caráter. A visão da cidade é simplesmente maravilhosa e descortina a famosa Ribeira, o bairro de Roma, a Praia da Boa Viagem e, no  centro, ainda na cidade baixa,  o Plano Inclinado, o Elevador Lacerda e, entre outros, o mercado Modelo e a Praça Cairu.


        Na cidade Alta, à altura do Elevador Lacerda, se podem observar inúmeras cúpulas  de Igrejas, e a magnífica imagem do Recôncavo que exibe o vai-e-vem dos navios, alguns deles  fundeados entre  a bela Ilha de Itaparica e a cidade de Salvador.


        Na entrada da cidade pode ser vista a Baixa do Sapateiro, a Ladeira do Pelourinho, a inesquecível Faculdade de Medicina, a Praça da Sé com o memorável cinema excelsior, a  rua Chile, e a Praça Castro Alves, onde a estátua do poeta baiano foi erguida no alto de um pedestal, lá está ele, de braço estendido, saudando o povo pelo que tanto lutou. Do outro lado está o cinema Guarani, onde foram projetados muitos filmes com Giuliano Gemma, nos memoráveis bang-bang macarrão, e o prédio do Jornal O Estado da Bahia, entre outros.


         Seguindo pela avenida chegamos ao Corredor da  Vitória, onde encontramos o Campo Grande, uma grande área verde, em cujo extremo Leste está situado o lindo Teatro Castro Alves. Este  é o caminho para os bairros do Canela e da Federação. 


         No outro lado a famosa Av. Sete de Setembro, onde na época, se encontravam os estúdios Rádio Bahia, o Pensionato Pe. Torrend, o Hotel da Bahia, e o Restaurante Universitário; era, sem dúvida, o caminho de acesso obrigatório para o famoso bairro da Graça, a  Ladeira da Barra, à pequena Praia da Barra, ao bairro da Barra-Avenida e ao famoso Farol da Barra.


     Seguindo enfrente,  já no mar aberto, à nossa direita, nos defrontamos com as areias brancas da Pituba.  Pituba de tantas e tão boas lembranças, o bairro do Rio Vermelho, onde viveu seu ilustre morador, o escritor Jorge Amado, autor de grandes romances, sempre ambientados na Bahia, obras que foram traduzidas em centenas de idiomas no Mundo. Sua casa é atualmente um museu, foi nos seus jardins que o escritor ganhava inspiração, foi lá, também, que Zélia Gattai, sua secretária e depois sua esposa,  aprendeu com o mestre, e escreveu sua obra magna: Anarquistas Graças a Deus, obra que lhe serviu para galgar os mais altos postos na Academia Brasileira de Letras.


        Seguindo a beira-mar passamos, entre outros, por  belos lugares, o Jd. de Aláh, as areias brancas da Lagoa de Abaeté e, em Itapoã, o  Aeroporto Internacional de Salvador. 


        A Bahia de todos os Santos têm uma plêiade de grandes estrelas e astros da música, irretocáveis compositores e cantores  como  Dorival Caymi, Gal Costa, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Betânia e agora, mais recentemente, entre tantos outros, Carlinhos Brown, Daniela Mercury, Cláudia Leite e a musa inspiradora Ivete Zangalo.


          Bem, depois de um ligeiro passeio por alguns pontos turísticos da bela cidade de Salvador, voltamos ao Corredor da Vitória, área nobre da cidade.


          A história que vamos contar ocorreu no  pensionato masculino Pe. Torrend, que, na época, ocupava  um  grande sobrado de frente ao Hotel Plaza, portanto de frente à Avenida Sete de Setembro, e  abrigava dezenas de jovens universitários, vindos em sua grande maioria do interior;  o casarão era tão grande que pelos fundos, após uma íngreme descida,  era limitado apenas  pelas águas do Oceano Atlântico, bem enfrente à Ilha de Itaparica.


          No pensionato que, certamente, foi construído no fim do século XVIII, haviam inúmeros quartos,  ao fundo, um campo de futebol de terra batida,  bem em  frente a uma fileira de quartos; ainda existiam vários banheiros, com apenas os canos e sem chuveiros, enfileirados num canto do enorme pátio central, e embaixo da Capela, num salão enorme e cheio de mesas e cadeiras, todo dia era servido o café da manhã, e o lugarzinho onde, cada fim de tarde, sentava-se um neguinho, carinhosamente chamado de Caristia, em seu afã de vender laranja descascada aos universitários.


          Na parte da frente do sobrado se chegava aos andares superiores por uma barulhenta escada de madeira, cheia de buracos, toda gasta pelo uso e pelo tempo. Havia, obrigatoriamente que passar por um obscuro corredor onde à esquerda, por falta de melhor lugar, foi esquecido um velho piano, razão pela qual exibia visual empoeirado e, certamente, já estaria todo desafinado. Enfrente, ainda no primeiro andar, estava a Capela, lá, bem cedo, era obrigatória a presença dos moradores do pensionato na missa de domingo.


        O Revdo. Padre Barturem era quem comandava o pensionato. E assim se passaram  anos atrás de anos.


        Juarez foi morar num quarto do terceiro andar do velho casarão, o quarto era provido de uma enorme janela que dava de frente com a verdejante avenida. No quarto  dividia uma vaga com um estudante de medicina,  e ambos  passavam as madrugadas estudando.


     Lá pela meia noite os ônibus de linha e o trânsito em geral na avenida começavam a escassear, e depois de uma hora da madrugada, na Av. Sete de Setembro, as únicas coisas que se moviam eram as copas das frondosas árvores que cresceram nas calçadas.


        O relógio da parede marcava  três da madrugada, e na rua tudo havia parado completamente, não havia nenhum movimento de veículos, não havia vento e o silêncio era quase desesperador. 


       De repente, ao longe, se ouviu um lamento, um lamento que parecia crescer de intensidade, e quando o ay, ay bem esticado, já estava perto, mais ou menos no Campo Grande, os cabelos dos corpos de ambos se encresparam e  levantaram, foi nesse momento que Juarez deu mais uma olhada rápida no relógio e se certificou de que eram nada menos que as 3,15 da madrugada, propôs, então, ao colega apagar a luz e esperar para ver quem era o maluco ou bêbado que se atrevia a se lamentar gritando pela avenida àquela hora.


        E assim foi, apagaram a luz, o andar era muito alto para que alguém os atingisse, ambos ficaram estáticos na janela esperando. O alongado ay, ay, aumentava, os dois se revestiram de coragem e ficaram na janela, o quarto permanecia sem luz, foi quando, na calçada do outro lado, por baixo das copas das árvores, viram apenas as pernas de uma pessoa andando, o ay.... ay...  ficou impressionantemente alto e quando a pessoa estava bem enfrente do casarão, o silêncio voltou, ninguém fazia o menor ruído, foi quando repentinamente o vulto  se abaixou, dos olhos dele saíam duas labaredas de fogo , e ficou olhando para os dois amigos que, por sua vez, ficaram com muito medo sentindo nos seus corpos com um estranho estremecimento.


        O jeito foi mergulhar, cada um na sua cama, e fechar a janela, foi desta forma que a voz foi ecoando no ar e se afastando até o ponto de desaparecer. 


        Juarez que era o mais corajoso dos dois, e saiu do quarto para ver se alguém mais viu tamanho pesadelo; o silêncio e a escuridão no 3º andar eram totais, ninguém mais naquela hora estava acordado no andar, mas uma música suave, vinda de baixo, cortou o silêncio, na verdade era um acorde suave, gostoso de se ouvir, foi, então, que Juarez resolveu descer mais, quem estaria ensaiando música àquela hora, talvez  alguém estivesse  acordado e havia visto também o pesadelo da rua. 


        Quando Juarez estava no meio da escada viu, na escuridão do ambiente, uma pessoa de capa preta tocando o velho piano que emitia lindas notas e um delicioso acorde.  Foi nesse momento que Juarez parou na escada, foi nesse preciso momento que conseguiu identificar a linda música que se espalhava no ar, era a nona Sinfonia de Beethoven; mas quem seria aquela pessoa tocando o velho piano, ainda mais àquela hora, e num som perfeito, com todos os acordes impecáveis.


        Mais uma vez seus cabelos ficaram eriçados; de repente sentiu medo, sua espinha formigou, seus nervos estavam crispados e à flor da pele, sentiu, então, vontade de gritar, mas, aquela hora pouco adiantaria. O medo era tão grande que não atinava nem a pensar, subiu de dois os degraus, entrou no quarto, bateu a porta atrás de si e, ofegante, se cobriu com o lençol, foi lá no escuro  que rezou, rezou muito, até que, exausto, adormeceu.


       A manhã chegou e o sol da Bahia de todos os Santos espalhou  sua luz  multicolorida sobre o mar. Usando as sábias palavras de um filósofo, por óbvio adequadas ao nosso caso, "...Há verdadeiramente muitos mistérios entre o céu a Terra que a própria razão desconhece..." mas que podemos imaginar.





HUGO ALBERTO CUÉLLAR URIZAR



é jornalista formado em São Paulo,

é cineasta e escritor.

sudamerisosasco.hugo@hotmail.com