Machacalis é uma simplória
cidadezinha baiana onde nasceu Juarez.
Prensada entre a montanha e o Oceano Atlântico, bem ao sul do estado, a pequena
cidade é hoje modelo de desenvolvimento, graças à força dos braços dos
imigrantes europeus que na segunda metade do Século XVIII lá se estabeleceram, e
assim, a mão que plantou, também serviu
para comercializar frutas, vegetais e queijos, entre outros.
Juarez aspirava entrar num curso
superior, não havia conseguido ainda, de
vez que em sua cidade não existia Universidade, assim teve ele que se contentar sendo oficial de joalheiro,
e, ao ver que os seus ganhos eram mirrados, começou a trabalhar como santeiro,
uma profissão que prometia no Brasil, e que foi trazida de Portugal por Cabral
e, tempos depois, esta arte foi muito bem desenvolvida em Minas Gerais, pelo
mestre Antonio Lisboa, O Aleijadinho.
Juarez, na verdade, sempre foi
autodidata em quase todas as artes; tinha terminado o segundo ciclo e parado
por aí.
Como poucos em sua cidade,
desenvolveu especial dom para trabalhar
com entalhes em cedro, assim produziu as
mais diversas formas de Sanhaços, depois virou santeiro, profissão muito mais
remunerada.
A maioria dos santos barrocos que eleproduziu,
foram parar na única Igreja Barroca da cidade, no final da rua central.
Mudando de época e lugar, no Far West
americano, os índios Siux, que foram
praticamente exterminados pelos brancos, contavam o tempo por luas, nós o
contaremos por sóis, pois o astro-rei irrompe todo dia com fortes raios na linha do horizonte do
oceano Atlântico, sobe e percorre o céu, até se esconder, com uma Lânguida Luz,
por trás da Serra.
Na época da Conquista do Oeste
Americano, a região tinha ricas jazidas de ouro no sub-solo, fato que atraiu
homens de todos os tipos; a região se tornou perigosa e seus habitantes, na
sede do metal e das mulheres de vida fácil, resolviam suas diferenças no
revolver, e, com o ocaso do ouro, muito posteriormente, a Indústria
Cinematográfica de Hollywood descobriu e produziu inúmeros filmes de Cowboys, estórias
tão interessantes que revelaram um rico filão
na sétima arte, tanto que foi
copiada pela Cinecitta da Itália, que pegando carona, produziu belos filmes de
Western pizza.
Em Machacalis tudo era grande, só não
era maior que a vontade de Juarez, em
sua incessante busca por Universidades,
que as sabia próprias das cidades maiores.
Foi assim que Juarez desembarcou em
Ilhéus, a bela cidade litorânea do sul baiano. Era Lá, outrora, o centro das
grandes produções de cacau exportadas
para Europa. Foi também lá que o exímio escritor baiano Jorge Amado se inspirou
para escrever grandes romances, cujos protagonistas foram os Coronéis da Região.
Mas, Juarez tinha muito desejo de novos
ares, novas conquistas, novos descobrimentos, e, Ilhéus, apesar do seu portento,
lhe escapava entre os dedos da mão.
Juarez estava sequioso de mais
conhecimento e de uma vida nova na cidade grande, buscava, na realidade, outras
oportunidades, e foi assim, que decidiu vencer a montanha rumo a uma vida nova.
No caminho da Serra parou em Itabuna,
um próspero aglomerado urbano. A cidade, em suas ruas de paralelepípedos,
exibia casas com feições coloniais, mostra de um passado de apogeu, de luxo e
poder; foi assim que Juarez tomou conhecimento
de Estanislaw, um senhor de origem européia, que sempre passava na
cidade procedente do Rio de Janeiro, para dias depois, percorrer em seu pequeno
avião Cessna, os garimpos do interior da Bahia, comprando cristal de rocha.
Quando na cidade, Estanislaw, homem
de cultura e muitas posses, instalava-se
num confortável casarão de sua propriedade. Sentado de frente a uma
ampla janela, balançava sua cadeira e de cachimbo na boca, se dava ao luxo de um ócio inventivo.
Depois de descansar, as vezes por duas semanas e pôr em dia os papos com os amigos, Estanislaw subia novamente a serra até Vitória da
Conquista, e lá no aeroporto da cidade,
guardava em hangar próprio, o seu pequeno avião com o qual continuava sua
viagem pelos garimpos e cidades baianas.
Juarez que não era nenhum comprador
de cristal de rocha, enveredou pela Rio-Bahia, em direção à cidade grande.
A estrada afastou a vegetação, a cada
lado, a mais de 20m. e se perdia de
vista, sempre em longas retas, só interrompidas por depressões no percurso,
emergindo do outro lado, e continuando sempre em linha reta até onde a vista
alcançava. O vapor que o asfalto
exalava, vez por outra, mostrava as imagens tremidas de algum gado que se
arriscava a atravessar a BR 116.
Depois de deixar inúmeras cidades ao
lado da estrada, finalmente Juarez chegou à Princesa do Sertão, Feira de Santana,
uma cidade plana que distribui o fluxo do trânsito para todo o interior da
Bahia.
Adiante, o ônibus em que Juarez
viajava virou à direita e enveredou em direção à capital Soteropolitana, era lá,
na cidade grande, que Juarez encontraria a realização dos seus desejos de
superação, era lá que estava traçado o seu destino, lá estavam plasmados os seus mais caros anseios.
Seguiu enfrente decidido, passou por
cima do arco-iris, e todo estiloso navegou num lindo céu azul anil, não sem
antes pensar que, na maioria das vezes, esperar nem sempre é bom, é protelar o
fato de ser feliz, mas tudo tem que ser feito na hora certa, e com muita fé,
sem medo, pois o medo só atrapalha.
O Astro Rei se ergueu deixando uma
estreita estela de fogo no mar, e como o importante mesmo é se reconhecer, o
reflexo dessa linha brilhante é o ensejo para uma divagação mais longa da
mente. Afinal, tudo corre num sentido só, e nossas ações isoladas não passam de
coisas minimalistas, que, em última análise, nada mudam, só estamos mais
velhos, mesmo que o tempo tenha corrido apenas um segundo, mas como sonhar é de
graça, sonhe e não esqueça que a nossa matéria está na corrida do tempo, e que
nosso tempo chegará ao seu final, não tenha a menor dúvida, por isso viva a
vida decentemente, o resto certamente é efêmero, é tolice.
A estrada continuava a exibir grandes retas, havia ondulações. A cada momento o trânsito na estrada aumentava.
Por fim, uma imagem linda, parecia um
quadro de aquarelas; na ponta de uma península se estendia Salvador, uma cidade
linda, agarrada ao continente, de um lado o Atlântico, o caminho dos
conquistadores lusitanos, e do outro lado o Recôncavo, dominado pela bela ilha
de Itaparica.
A capital soteropolitana foi a
primeira capital do Brasil, e exibe as
mais belas cúpulas das magníficas igrejas que povoam seu visual.
No extremo norte a surpreendente
visão começa com o Mont Serrat, e, entre tantos outros, a famosa Igreja do Bomfim,
conhecida também pela Procissão dos Navegantes e a lavagem de suas escadas por
diversas baianas, vestida a caráter. A
visão da cidade é simplesmente maravilhosa e descortina a famosa Ribeira, o
bairro de Roma, a Praia da Boa Viagem e, no centro, ainda na cidade baixa, o Plano Inclinado, o Elevador Lacerda e, entre
outros, o mercado Modelo e a Praça Cairu.
Na cidade Alta, à altura do Elevador
Lacerda, se podem observar inúmeras cúpulas
de Igrejas, e a magnífica imagem do Recôncavo que exibe o vai-e-vem dos
navios, alguns deles fundeados
entre a bela Ilha de Itaparica e a
cidade de Salvador.
Na entrada da cidade pode ser vista a
Baixa do Sapateiro, a Ladeira do Pelourinho, a inesquecível Faculdade de
Medicina, a Praça da Sé com o memorável cinema excelsior, a rua Chile, e a Praça Castro Alves, onde a
estátua do poeta baiano foi erguida no alto de um pedestal, lá está ele, de
braço estendido, saudando o povo pelo que tanto lutou. Do outro lado está o
cinema Guarani, onde foram projetados muitos filmes com Giuliano Gemma, nos
memoráveis bang-bang macarrão, e o prédio do Jornal O Estado da Bahia, entre
outros.
Seguindo pela avenida chegamos ao
Corredor da Vitória, onde encontramos o
Campo Grande, uma grande área verde, em cujo extremo Leste está situado o lindo
Teatro Castro Alves. Este é o caminho
para os bairros do Canela e da Federação.
No outro lado a famosa Av. Sete de
Setembro, onde na época, se encontravam os estúdios Rádio Bahia, o Pensionato
Pe. Torrend, o Hotel da Bahia, e o Restaurante Universitário; era, sem dúvida,
o caminho de acesso obrigatório para o famoso bairro da Graça, a Ladeira da Barra, à pequena Praia da Barra, ao
bairro da Barra-Avenida e ao famoso Farol da Barra.
Seguindo enfrente, já no mar aberto, à nossa direita, nos
defrontamos com as areias brancas da Pituba. Pituba de tantas e tão boas lembranças, o
bairro do Rio Vermelho, onde viveu seu ilustre morador, o escritor Jorge Amado,
autor de grandes romances, sempre ambientados na Bahia, obras que foram
traduzidas em centenas de idiomas no Mundo. Sua casa é atualmente um museu, foi
nos seus jardins que o escritor ganhava inspiração, foi lá, também, que Zélia
Gattai, sua secretária e depois sua esposa, aprendeu com o mestre, e escreveu sua obra magna:
Anarquistas Graças a Deus, obra que lhe serviu para galgar os mais altos postos
na Academia Brasileira de Letras.
Seguindo a beira-mar passamos, entre
outros, por belos lugares, o Jd. de
Aláh, as areias brancas da Lagoa de Abaeté e, em Itapoã, o Aeroporto Internacional de Salvador.
A Bahia de todos os Santos têm uma plêiade
de grandes estrelas e astros da música, irretocáveis compositores e
cantores como Dorival Caymi, Gal Costa, Caetano Veloso,
Gilberto Gil, Maria Betânia e agora, mais recentemente, entre tantos outros,
Carlinhos Brown, Daniela Mercury, Cláudia Leite e a musa inspiradora Ivete
Zangalo.
Bem, depois de um ligeiro passeio por
alguns pontos turísticos da bela cidade de Salvador, voltamos ao Corredor da
Vitória, área nobre da cidade.
A história que vamos contar ocorreu
no pensionato masculino Pe. Torrend,
que, na época, ocupava um grande sobrado de frente ao Hotel Plaza,
portanto de frente à Avenida Sete de Setembro, e abrigava dezenas de jovens universitários,
vindos em sua grande maioria do interior; o casarão era tão grande que pelos fundos,
após uma íngreme descida, era limitado
apenas pelas águas do Oceano Atlântico,
bem enfrente à Ilha de Itaparica.
No pensionato que, certamente, foi construído
no fim do século XVIII, haviam inúmeros quartos, ao fundo, um campo de futebol de terra batida,
bem em frente a uma fileira de quartos; ainda
existiam vários banheiros, com apenas os canos e sem chuveiros, enfileirados
num canto do enorme pátio central, e embaixo da Capela, num salão enorme e
cheio de mesas e cadeiras, todo dia era servido o café da manhã, e o lugarzinho
onde, cada fim de tarde, sentava-se um neguinho, carinhosamente chamado de Caristia,
em seu afã de vender laranja descascada aos universitários.
Na parte da frente do sobrado se
chegava aos andares superiores por uma barulhenta escada de madeira, cheia de
buracos, toda gasta pelo uso e pelo tempo. Havia, obrigatoriamente que passar
por um obscuro corredor onde à esquerda, por falta de melhor lugar, foi esquecido
um velho piano, razão pela qual exibia visual empoeirado e, certamente, já
estaria todo desafinado. Enfrente, ainda no primeiro andar, estava a Capela, lá,
bem cedo, era obrigatória a presença dos moradores do pensionato na missa de
domingo.
O Revdo. Padre Barturem era quem
comandava o pensionato. E assim se passaram
anos atrás de anos.
Juarez foi morar num quarto do
terceiro andar do velho casarão, o quarto era provido de uma enorme janela que
dava de frente com a verdejante avenida. No quarto dividia uma vaga com um estudante de
medicina, e ambos passavam as madrugadas estudando.
Lá pela meia noite os ônibus de linha
e o trânsito em geral na avenida começavam a escassear, e depois de uma hora da
madrugada, na Av. Sete de Setembro, as únicas coisas que se moviam eram as
copas das frondosas árvores que cresceram nas calçadas.
O relógio da parede marcava três da madrugada, e na rua tudo havia parado
completamente, não havia nenhum movimento de veículos, não havia vento e o
silêncio era quase desesperador.
De repente, ao longe, se ouviu um
lamento, um lamento que parecia crescer de intensidade, e quando o ay, ay bem esticado,
já estava perto, mais ou menos no Campo Grande, os cabelos dos corpos de ambos
se encresparam e levantaram, foi nesse
momento que Juarez deu mais uma olhada rápida no relógio e se certificou de que
eram nada menos que as 3,15 da madrugada, propôs, então, ao colega apagar a luz
e esperar para ver quem era o maluco ou bêbado que se atrevia a se lamentar
gritando pela avenida àquela hora.
E assim foi, apagaram a luz, o andar era
muito alto para que alguém os atingisse, ambos ficaram estáticos na janela
esperando. O alongado ay, ay, aumentava, os dois se revestiram de coragem e
ficaram na janela, o quarto permanecia sem luz, foi quando, na calçada do outro
lado, por baixo das copas das árvores, viram apenas as pernas de uma pessoa
andando, o ay.... ay... ficou
impressionantemente alto e quando a pessoa estava bem enfrente do casarão, o
silêncio voltou, ninguém fazia o menor ruído, foi quando repentinamente o vulto
se abaixou, dos olhos dele saíam duas labaredas
de fogo , e ficou olhando para os dois amigos que, por sua vez, ficaram com
muito medo sentindo nos seus corpos com um estranho estremecimento.
O jeito foi mergulhar, cada um na sua
cama, e fechar a janela, foi desta forma que a voz foi ecoando no ar e se afastando
até o ponto de desaparecer.
Juarez que era o mais corajoso dos
dois, e saiu do quarto para ver se alguém mais viu tamanho pesadelo; o silêncio
e a escuridão no 3º andar eram totais, ninguém mais naquela
hora estava acordado no andar, mas uma música suave, vinda de baixo, cortou o
silêncio, na verdade era um acorde suave, gostoso de se ouvir, foi, então, que
Juarez resolveu descer mais, quem estaria ensaiando música àquela hora, talvez alguém estivesse acordado e havia visto também o pesadelo da
rua.
Quando Juarez estava no meio da
escada viu, na escuridão do ambiente, uma pessoa de capa preta tocando o velho
piano que emitia lindas notas e um delicioso acorde. Foi nesse momento que Juarez parou na escada, foi
nesse preciso momento que conseguiu identificar a linda música que se espalhava
no ar, era a nona Sinfonia de Beethoven; mas quem seria aquela pessoa tocando o
velho piano, ainda mais àquela hora, e num som perfeito, com todos os acordes
impecáveis.
Mais uma vez seus cabelos ficaram eriçados; de
repente sentiu medo, sua espinha formigou, seus nervos estavam crispados e à
flor da pele, sentiu, então, vontade de gritar, mas, aquela hora pouco
adiantaria. O medo era tão grande que não atinava nem a pensar, subiu de dois
os degraus, entrou no quarto, bateu a porta atrás de si e, ofegante, se cobriu
com o lençol, foi lá no escuro que rezou,
rezou muito, até que, exausto, adormeceu.
A manhã chegou e o sol da Bahia de
todos os Santos espalhou sua luz multicolorida sobre o mar. Usando as sábias
palavras de um filósofo, por óbvio adequadas ao nosso caso, "...Há
verdadeiramente muitos mistérios entre o céu a Terra que a própria razão
desconhece..." mas que podemos imaginar.
HUGO ALBERTO CUÉLLAR URIZAR
é jornalista
formado em São Paulo,
é cineasta e
escritor.
sudamerisosasco.hugo@hotmail.com