Componho as histórias das minhas viagens pelo mundo em relatos de pequenas histórias dentro das histórias, e esta é uma das tantas que ocorreram na Ásia.
Quando os pneus do jato tocaram na pista do aeroporto Internacional de Pequin (Beijing), estávamos no meio da manhã, pelo fuso-horário local, após quase 20 horas de exaustivo vôo.
Na chegada a comitiva brasileira da qual fazia parte embarcou num ônibus até um hotel no centro dessa imensa metrópole.
Depois de um bom banho, um merecido descanso e uma rápida refeição à moda ocidental no hotel, novamente estávamos percorrendo uma avenida com um enlouquecedor tráfego de automóveis e todo tipo de outros veículos, triciclos motorizados e uma infinidade de chineses em bicicletas por todo lado.
Quando se chega à China tudo é novidade, as pessoas, suas roupas típicas, e a extraordinária massa humana que se movimenta de bicicleta --o meio mais comum de transporte--, é qualquer coisa de muito inusitado num país que possui uma população de 1,2 bilhão de habitantes em 2011.
Depois de atravessar boa parte da cidade e percorrer uns 15 minutos de estrada chegamos a uma área montanhosa, e começamos a divisar, na ondulação das montanhas, a soberba construção da Grande Muralha da China, a maior obra que o homem já conseguiu construir em toda sua história e é considerada uma das 7º Maravilhas do mundo.
A Muralha foi construída na China Imperial e começou a ser erguida por volta de 221 a.C. pelo imperador Qin Shihuang. Construída ao longo de dois mil anos, em várias dinastias, seus 7300 km de comprimento se estendem do NE da China até a Mongólia, e na época servia para conter as constantes hordas invasoras dos povos do norte.
Depois das fotografias de praxe e já no final da tarde voltamos a Pequin. Tudo acontecia de forma muito rápida, intuímos que a visita às Muralhas não estivesse na programação, razão pela qual tudo começou a ser feito praticamente a toque de caixa; nossa confusão era maior porque não entendíamos uma sílaba sequer de mandarin, a língua padrão da China. No começo da noite, nos encontrávamos diante de uma imensa estação ferroviária.
A estação é simplesmente monumental, porém, mais impressionante ainda é a multidão de pessoas que ali se movimenta; são ondas de gente que entram e saem por um sem número de portões; perder-se do grupo naquela enorme confusão humana seria desastroso, ainda mais naquele momento em a que noite transformava as avenidas em vias cheias de estonteantes luzes coloridas.
O guia que falava num português sofrível nos conduziu por dentro dessa multidão até perto de uma plataforma onde, segundo ele, em 15 minutos chegaria a composição que nos levaria ao nosso destino.
Suzhou é um importante entroncamento ferroviário localizado na região sul da província de Jiangsu. A cidade antiga nos remete ao ano 54 a.C. e até hoje, em grande parte conserva suas construções.
Nos minutos que nos restavam antes da chegada do trem saímos numa alucinada procura de algumas frutas ou outros alimentos, estávamos o dia todo praticamente sem comer. A comitiva era formada de 15 pessoas, incluindo o chefe da delegação, o Conde Antonio Lampeduza Bruni, a Condessa e as quatro ciosas senhoras que se alternavam em sua guarda.
Tudo que víamos na estação era completamente desconhecido, e pior, num único dia ainda não tivemos tempo de aprender a lidar com o Yuan ou Kuai, a moeda oficial chinesa e seus centavos, como o fen, o jiao, o qian e convertê-los em dólar, Num pequeno balcaozinho vimos algumas garrafinhas, umas contendo qualquer coisa branca e outras com algum líquido amarelo que a nossa fome nos fazia imaginar como sendo leite e suco de laranja, mas que ao experimentar sentimos o gosto de qualquer coisa intragável.
A solução era tentar comer no restaurante do trem, pois nos esperava uma longa noite de viagem até Suzhou, onde seríamos recebidos oficialmente pelas autoridades locais, como parte de um intercambio cultural e de interesses mútuos.
O trem parou na plataforma e rapidamente tomamos posição nos camarotes que tinham um beliche com duas camas, uma cadeira e um pequeno espaço para acomodar nossas malas.
Os oito camarotes que nos foram reservados estavam num só vagão e todos davam para um estreito corredor em cuja extremidade fazia uma curva em S para contornar um pequeno cubículo que era o W.C., dali em diante se passava para outro vagão onde estava o restaurante.
O trem começou a se deslocar lentamente e já fora da estação percebi que tudo lá fora estava coberto de branco, caía uma neve fina, as ruas e os telhados das casas e os prédios estavam cobertos de um belo branco uniforme.
Sentado na cama inferior do beliche, enquanto meu companheiro roncava, imaginava a difícil noite que enfrentaríamos a partir daquele momento, foi quando entrou o interlocutor do grupo para anunciar que em uma hora nos encontraríamos no carro-restaurante.
Boa idéia! Ótima idéia!, festejamos.
Animado pela boa nova fiquei mais um bom tempo admirando o panorama que se descortinava na passagem do trem. Aos poucos a imensa Pequin foi ficando distante, o trem passava por longos trechos escuros até encontrar outra cidade onde parava apenas por alguns minutos e retomava a viagem.
A fome estava brava, decidimos, então, ir até o carro-restaurante. No corredor, duas guardinhas, uniformizadas a caráter estavam sentadas em banquinhos como que a cuidar dos viajantes. Passamos por elas, cumprimentado-as com o movimento da cabeça; na curva pedi ao meu companheiro para que fosse na frente enquanto eu entraria na toalete.
Abri a porta do W.C. e qual não foi minha surpresa, era apenas um pequeno quadrado, não tinha lavatório, nem papel higiênico e nem vaso sanitário, em seu lugar um buraco pelo qual se viam os dormentes passando por baixo do trem, e dois pesinhos de porcelana branca, um a cada lado do orifício, indicando a posição em que o usuário deveria ficar.
Não acreditei no que via, um vento gelado entrava pelo buraco. Felizmente o homem não tem muita dificuldade para fazer xixi, e nem precisei ficar encima dos pesinhos, depois, saí apavorado!
No restaurante encontrei o pessoal, menos o Conde, a Condessa e suas assessoras. Logo comecei a descrever para todos como era a toalete, mas a maioria já havia passado por lá, o único que não conhecia o cubículo ainda era meu companheiro que abriu uma larga gargalhada como que a não acreditar.
Minutos depois passou uma chinesinha empurrando um carrinho, com as mesmas garrafinhas que havíamos comprado na estação de Beijing; não havia nada que pudéssemos comer, estávamos condenados a passar fome até chegar em Suzhou.
Julio, um companheiro de outras viagens ao redor do mundo sempre foi muito precavido, acostumado que estava às desventuras de algumas viagens, por isso trazia sempre em sua mala um pedaço de salame e seu inseparável canivete. Aclamado por todos, rapidamente foi buscar essa salvação.
O Conde, sua esposa e seu séqüito, certamente tinham algumas reservas alimentícias que não queriam compartilhar com o grupo e nem apareceram no carro-restaurante até àquela hora, quase meia noite.
Enquanto aguardávamos ansiosamente a retorno de Júlio tudo ia bem, porém, um detalhe chamou minha atenção, comecei a notar que sumiram os guardanapos de papel das mesas. Estranho demais!
A chegada de Julio foi festejada e cada um recebeu uma fatia do salame cortada por ele mesmo com muito esmero.
O salame não matou a fome de ninguém, ao contrário, aguçou mais a vontade de comer e ainda aumentou a sede de todos. A situação estava ficando difícil, e nos retiramos para tentar descansar.
No camarote comentei com meu companheiro que lá pelas duas horas da madrugada iria até o banheiro, pelo menos nesse horário não teria ninguém. Ele, por sua vez estava tranqüilo pois ainda na estação de Pequin encontrou uma toalete de verdade.. Dei uma cochilada, até a hora que considerei que todo mundo já dormia e decidi ir ao banheiro.
Tirei os sapatos e fiquei de meias para não fazer barulho, rasguei duas folhas de uma revista que pegara em Pequin e abri devagar a porta do camarote, olhei para um e para outro lado, tudo calmo, as guardinhas em seus banquinhos pareciam dormir, a neve lá fora continuava a cair e, exatamente como a pantera cor de rosa, comecei a caminhar em direção àquele cubículo com o buraco no chão que servia de banheiro, e agora sem mais alternativa, teria que usar os pesinhos.
Como um gato atrás de sua presa cuidadosamente fui em direção à extremidade do vagão, não queria acordar ninguém, seria muito desagradável encontrar alguém esperando na porta quando fosse sair desse único e primitivo banheiro. Passei por uma das guardinhas, eu não sabia se estava acordada ou dormindo, seus olhos eram dois traços apenas em meio a uma cara redonda.
Continuei, já me aproximava da curva à esquerda, ali não havia mais camarotes, depois era só outra curva à direta e, finalmente, me aliviaria, mesmo com o tufo de vento gelado que sopraria pelo buraco.
Faltavam dois passos para chegar à curva. Dei o primeiro e, quando acabei de esticar a perna para o segundo passo, qual não foi a minha surpresa, estava quase todo o grupo enfileirado lá!
Todo mundo tinha pensado igual, e todo mundo se achou lá; o jeito foi fazer fila, ai compreendi por que haviam desaparecido os guardanapos do carro-restaurante.
Quis ainda recuar, mas todos me viram e em coro gritaram: fila...fila...fila!
Para não perder o fio da meada, fiz um positivo com o dedo, e com naturalidade perguntei quem estava lá dentro?
Nem precisou de resposta, nesse momento vi que duas assessoras da Condessa estavam postadas, uma a cada lado da porta do banheiro.
Lembrei, então, que na vida, independente das vaidades, do poder e da riqueza, há coisas que tanto o rei como o vassalo tem que fazer identicamente, são as inadiáveis funções fisiológicas, a diferença pode ficar por conta do luxo do local, mas há situações como esta em que todos são igualados por baixo; por acaso naquele momento a nobreza não estaria acocorada sobre os pesinhos tomando aquela fria golfada de ar que vinha lá de fora!
Nessa hora não há vaidade, riqueza ou poder que resista!